Associação duvidosa de um texto do início do Séc. XX com
o Hermetismo
O
Caibalion, publicado
em 1912 pelo pseudônimo Três Iniciados, é amplamente considerado um clássico do
esoterismo do século XX. O trabalho consiste em aforismos a partir de um texto
de mesmo nome, bem como extensos comentários sobre estes. Ele descreve sete
princípios ou leis universais "sobre as quais," afirma, "toda a
Filosofia Hermética é baseada."1 Uma boa compreensão e
aplicação dessas leis, de acordo com o texto, permitirá que um indivíduo
alcance o autodomínio.
Já se reconhece amplamente hoje que O Caibalion, tanto como uma coleção de
aforismos quanto de comentários subsequentes, foi um produto de um movimento do
final do séc. XIX e início do século XX, o movimento do Novo Pensamento, e foi
provavelmente escrito individualmente por William Walker Atkinson. Apesar da
aceitação generalizada desta posição, no entanto, a associação auto-proclamada
do Caibalion com Hermetismo tem sido
em grande parte incontestada. Philip Deslippe, em sua introdução à edição
Penguin/Tarcher de O Caibalion[ii],
tem muito a dizer sobre o contexto do Novo Pensamento, do qual o trabalho
emergiu, e trás convincentes argumentos sobre a autoria de Atkinson, mas, ao
mesmo tempo, ele entusiasticamente promove O
Caibalion como um herdeiro da tradição hermética, afirmando que ele
"criou uma ponte entre os mundos ocultos dos séculos XIX e XX, amalgamando
ensinamentos esotéricos e organizando-os de tal forma que iriam inspirar de
maneira única um vasto e diversificado grupo de buscadores, até os dias de hoje."2
Enquanto o último pode ser verdade, quando afirma que O Caibalion é um exemplo de filosofia hermética, ou mesmo um
herdeiro da mesma, ele pisa em um terreno consideravelmente mais frágil.
Certamente, O Caibalion está
firmemente arraigado na tradição esotérica ocidental. No entanto, estaria ele
realmente em consonância com o domínio específico do Hermetismo? Este estudo
realiza uma análise crítica do pensamento de O Caibalion em comparação e em contraste com o pensamento Hermético
antigo e moderno, a fim de responder a esta pergunta. Além disso, apesar da
associação do Caibalion com o Novo
Pensamento não ser de forma alguma novidade, as análises detalhando os pontos
em comum entre os dois campos têm sido, até agora, em grande parte de natureza
superficial. Assim, um dos objetivos deste estudo é ilustrar também mais
claramente as formas nas quais O
Caibalion evidencia a doutrina do Novo Pensamento, e situá-las de forma
adequada dentro deste contexto. E então, com O Caibalion situado em seu adequado quadro histórico, proceder-se-á
o estudo para avaliar a conexão do Caibalion,
ou falta dela, com o Hermetismo enquanto corrente histórica.
Antiguidade Espúria
Embora o Caibalion clame por antiguidade, ele é decididamente um produto da
modernidade. O princípio da vibração que os aforismos tão fortemente enfatizam,
por exemplo, teve sua origem na metade do século XVIII, com o filósofo
britânico e médico David Hartley (1705-1757).3 O comentário sobre os
aforismo é decididamente oriundo do século XX, referindo-se à obras que não
foram publicadas até o início nos anos 90.4 A esmagadora
probabilidade é que os aforismos foram cunhados concomitantemente aos comentários
no início do século XX e apresentados como um produto do pensamento antigo, a
fim de cobri-los com um verniz de respeitabilidade que a religião adquire
quando se associa à uma tradição histórica. E esta não era uma prática incomum
dentro do movimento do Novo Pensamento. Horatio Wills Dresser, uma figura
proeminente nos círculos do Novo Pensamento, admite abertamente que "a
tendência é atribuir ao Novo Pensamento muito mais do que pode ser reivindicado
com precisão histórica."5 Ele diz ainda que "esta história
[de Novo Pensamento] pode desapontar alguns leitores, se tiverem criado em suas
mentes a ideia de que é necessário olhar para o longínquo passado e descobrir
ideias na Índia, na Grécia antiga, na Idade Média, que lembram as ideias
terapêuticas de hoje."6
A falsa pretensão de antiguidade de O Caibalion se estende até mesmo ao nome
do próprio texto. A palavra "Caibalion" [N. do T., “Kybalion”] assume a forma de um
substantivo grego, mas não tem nenhum significado nessa ou em qualquer outra
língua. É possível que o nome tenha sido construído com uma similaridade em
mente com a palavra Cabala, e outros têm especulado que ele foi inspirado pela
deusa greco-romana Cybele (gr. Kubelē), mas como aponta Deslippe "a falta
de qualquer correspondência ou referência a qualquer um deles dentro do Caibalion sugere que, se há alguma,
estas não são nada mais do que mera coincidência."7 Ao invés de
coincidência, no entanto, parece que a explicação mais provável é que o título
foi escolhido como uma alusão a uma ou ambas destas fontes para insinuar uma
ligação com a antiguidade. O texto em si é silencioso quanto a este ponto,
dizendo apenas "o sentido exato e o significado do termo [ter] sido
perdido há muitos séculos." 8
Apresentando O Caibalion
A tese central de O Caibalion é que a existência é regida por sete leis universais:
Os princípios do mentalismo, correspondência, vibração, polaridade, ritmo,
causa e efeito, e gênero.9 Resumidamente, esses princípios quando
tomado como um conjunto esboçam uma forma de idealismo filosófico10 no
qual o universo existe na mente da divindade; que o macrocosmo corresponde ao
microcosmo; que as diferenças entre os diferentes estados da matéria, mente e
espírito são o resultado de diferentes ritmos de vibração; que tudo tem o seu
oposto mas que todos os opostos são, em última instância, idênticas em
natureza; que não há um balanço natural e de inda e vinda entre os extremos
opostos; que toda causa tem um efeito e vice-versa; e que em tudo evidencia-se
qualidades masculinas e femininas.11O Caibalion em seguida, passa a detalhar uma habilidade de
"Transmutação Mental", que é definida como "a arte de mudar e
transformar estados mentais, formas e condições, em outros" através do
correto entendimento e aplicação dessas leis universais.12
À primeira vista, estes princípios são
todos consonantes com a filosofia Hermética. Uma investigação mais profunda
tanto do próprio pensamento quanto de seu contexto histórico correspondente, no
entanto, revela que o trabalho é enfaticamente representante do movimento do
Novo Pensamento Americano que surgiu no final do século XIX e início do XX.
A conexão com o Novo Pensamento
Originalmente conhecido sob muitos
nomes, incluindo Ciência Mental, Ciência Cristã, e Cura Mental, antes de se
cristalizar sob o nome geral de "Novo Pensamento" na década de 1890,
o Novo Pensamento era, fundamentalmente, "psicologia de auto-ajuda
popular" originária da década de 1870 e que prometia o domínio através da
auto-disciplina.13 Em 1889, com o advento da Ciência Espiritual da Saúde e da Cura*de
William Juvenal Colville, as terapias associadas com o Novo Pensamento
tornaram-se espiritualizadas "de uma forma típica dos crentes em
mediunidade ou espiritismo."14 Assim, até então enquanto uma
doutrina científico-espiritual, o Novo Pensamento forjou doravante suas raízes
espirituais no Mesmerismo Americano.15
O exercício da mente sobre a matéria,
que era uma preocupação central do Novo Pensamento, era conseguido
"colocando-nos em uma nova relação com o mundo que nos cerca através da alteração
do nosso pensamento a respeito dela.”16 Horatio Wills Dresser expõe
mais sobre este princípio em sua introdução em O Espírito do Novo Pensamento, quando afirma que a doutrina "é
uma teoria e método da vida mental, com especial referência à cura, e à
promoção de atitudes, modos de conduta e crenças que contribuem para a saúde e
para o bem-estar geral. A teoria, em suma, é que o homem leva uma vida
essencialmente mental, influenciada, formada, e controlada por antecipações,
esperanças e sugestões".17
Este, de fato, é o foco da
"Transmutação Mental" delineado no Caibalion. Um componente central
da transmutação mental conforme encontrada no Novo Pensamento foi a "lei
da atração". Dentro Novo Pensamento a ênfase principal desta transmutação
estava na cura do corpo e da mente. A doença física era considerada uma
expressão externa do estado interior do indivíduo, este considerado o ponto
focal da atração. Ao mudar a atitude mental através de afirmações e pensamento
positivo, a doença poderia, portanto, ser curada e estados mentais
problemáticos superados.18 Embora o princípio da influência da mente
sobre a matéria fosse mais visivelmente aplicado à doença e ao bem-estar, com o
passar do tempo passou a ser aplicado a outras áreas, incluindo a felicidade e
realização espiritual.19
A compreensão e a adequada aplicação
do pensamento e da atitude foi então considerada como essencialmente salvífica.
Em contraste com o "velho pensamento", que "era inegavelmente
pessimista, [...] habitando no pecado, enfatizando a escuridão e miséria do
mundo, [e] a angústia e o sofrimento," o Novo Pensamento "habitou a
vida e a luz, apontando o caminho para o domínio de toda a dor e
sofrimento."20 A ênfase do Novo Pensamento no conhecimento
salvífico muitas vezes vem sob a forma de uma doutrina de lei universal.
"Em todas as coisas," de acordo com Dresser, "há apenas uma lei.
Essa lei é boa. É o princípio fundamental do universo. Mas, por ignorância, o
homem sofre temporariamente e causa sofrimento porque ele não conhece a
universalidade da lei - porque ele procura pela causa fora do seu próprio mundo
interior."21 O Novo Pensamento, por outro lado, "afirma
que é possível que a alma comande a mente", contanto que por sua vez ela
"obedeça às leis da mente."22
Quando o conteúdo do Caibalion é examinado à luz da filosofia
do Novo Pensamento, torna-se prontamente aparente que o texto é fortemente
representante desse meio. Esta associação torna-se ainda mais clara quando o trabalho
de William Walker Atkinson, o autor provável do Caibalion, é examinado mais detalhadamente.
A conjectura da autoria de Atkinson
William Walker Atkinson era uma figura
influente no movimento Novo Pensamento, tendo sido um editor de várias
publicações e escrevendo abundantemente sobre uma variedade de temas,
frequentemente usando pseudônimos. Ele diversas vezes se referiu aos seus
escritos como ocultismo prático, Nova Psicologia e Novo Pensamento.23
A meia dúzia de pseudônimos sob os quais ele escreveu foram igualmente
exuberantes e diversificados, incluindo Yogi Ramachandra, Theron Q. Dumont, e
Magus Incognito.24 Ele foi também um prolífico conferencista e
trabalhou por um tempo como o vice-presidente honorário do International New
Thought Alliance.25
Philip Deslippe, em sua introdução à
edição Penguin/Tarcher de O Caibalion,
defende uma forte tese que atribui autoria exclusiva do texto por Atkinson. Ele
desconstrói muitas das outras especulações comuns a respeito de quem teria sido
autor de O Caibalion, e fornece
evidências de quesão, no mínimo, altamente sugestivas quanto ao fato de
Atkinson ser a verdadeira face por trás dos Três Iniciados. Entre outras
similaridades, ressalta o tema surpreendentemente comum de sete leis cósmicas
ou universais no trabalho de Atkinson.26 Notável também é o fato de
que na edição de 1912 do Who’s Who in
America[iii], a informação biográfica
que o próprio Atkinson submeteu inclui O
Caibalion dentre sua lista de obras.27 Talvez o mais convincente
para qualquer um que já se deparou com outros escritos de Atkinson, no entanto,
é a estranha semelhança de estilo entre suas outras obras e O Caibalion. Deslippe mesmo observa que
existem "semelhanças de conteúdo, formato e fontes de material [que] não
existem com qualquer outro escritor", e que na verdade "quando
colocado lado a lado com outras obras de Atkinson do mesmo período, o estilo de
O Caibalion é consistente e sem
fronteira com eles, empregando o mesmo tom, voz, peculiaridades da sintaxe e
escolha de palavras."28
Mesmo após um exame superficial dos
outros escritos de Atkinson, torna-se prontamente aparente que essas
semelhanças são convincentes. Sua ênfase nas vibrações, na transmutação mental,
na lei da atração, e na lei cósmica em geral, ecoa fortemente o conteúdo e
prosa do Caibalion. Em Vibração do Pensamento ou a Lei da Atração
no Mundo do Pensamento[iv],
publicado contemporaneamente ao Caibalion,
ele usa especificamente a frase "Transmutação de Pensamento", e
refere-se a este "segredo da Vontade" como "a chave mágica que abre
todas as portas."29 Ele desenvolve ainda mais esta ideia da
"chave antiga" em A Lei do Novo
Pensamento[v],
quando afirma que "os escritores antigos cuidadosamente colocaram
fragmentos de [...] verdade esotérica dentre os escritos de grande circulação,
sabendo que apenas aqueles com a chave
poderiam ler..."30 Ele continua,"[A] idéia da Unidade do
Todo [...] está no centro de todo o pensamento religioso, embora oculto, até
que seja encontrada a chave. É a chave que abre todas as portas."31
Compare isso com O Caibalion,
que afirma que sua intenção é "colocar nas mãos do estudante uma
Chave-Mestra com a qual ele pode abrir muitas portas interiores no Templo do
Mistério através das portas principais que ele já adentrou".32
O foco no conceito de vibrações e a
maneira em que este material é apresentado também é muito semelhante entre as
outras obras de Atkinson e O Caibalion.
Em Vibração do Pensamento, Atkinson
afirma que "a Luz e o Calor são manifestados por vibrações de uma intensidade
muito mais baixa do que aquelas do Pensamento, mas a diferença é apenas na
frequência de vibração."33 Compare isso com o Caibalion, que afirma que "os
ensinamentos [Herméticos] são para o efeito de que o Espírito está em uma
extremidade do Pólo de Vibração, sendo o outro Pólo certas formas extremamente
grosseiras de matéria."34 Atkinson também nega a existência do
acaso tanto em Vibração do Pensamento
quanto em O Caibalion. No primeiro,
ele afirma que "não há tal coisa como acaso. A Lei se mantém em todos os
lugares, e tudo o que acontece, acontece por causa da operação da Lei".35 O Caibalion semelhantemente proclama
que "tudo acontece de acordo com a Lei; o acaso nada mais é que um nome
para a Lei não reconhecida."36 Há também um curioso enfoque
nadistinção entre o medo e a coragem. Em O
Caibalion nos é dito que "no caso de um homem Temeroso", ele pode
"ser preenchido com o mais alto grau de Coragem e Destemor" ao
"elevar suas vibrações mentais acima da linha do Medo-Coragem."37
Em Vibrações do Pensamento, Atkinson
aconselha: "Quando sentirdes Medo, lembre-se que o Verdadeiro Eu nada
teme, e afirmes a Coragem."38 Aqui, a prosa é tão semelhante
que Atkinson mesmo faz uso da mesma capitalização idiossincrática em ambas as
obras, que talvez devesse não ser surpreende, dado que os dois trabalhos foram
publicados com um ano de diferença do outro.
Não era algo incomum a reivindicação
de Walker acerca de uma origem antiga para o Novo Pensamento do Caibalion. Vários outros autores
conectaram o Novo Pensamento à Teosofia, Espiritismo, o panteísmo, a religião
da Índia, e os ensinamentos de Emanuel Swedenborg.39 O Novo
Pensamento "naturalmente encontrou variadas expressões porque apelou para
indivíduos de diferentes tipos. Cada um se incutiu das ideias centrais e, em
seguida, começou a desenvolver seus pontos de vista especiais ao redor
destas."40 Atkinson mesmo notável e consistentemente afirma que
"não existe nada novo sobre essa
verdade. A mesma coisa foi dito pelos antigos filósofos da Índia, há cinco mil
anos; pelos filósofos da Grécia, dois mil e quinhentos anos atrás; por
Berkeley, Hegel e Kant e seus seguidores".41 Atkinson expõe
mais sobre isso em A Lei do Novo
Pensamento, quando afirma que "o Novo Pensamento é o pensamento mais antigo em existência. Foi estimado
por uns poucos escolhidos em todas as idades; as massas do povo não estando
prontas para seus ensinamentos. Ele tem sido chamado por todos os nomes - tem
aparecido em todas as formas"42 Ele continua a afirmar que a
doutrina do Novo Pensamento contém "poderosas verdades que têm se aninhado
no seio dos ensinamentos esotéricos de todas as religiões, nas filosofias do
passado e do presente, nos templos do Oriente, nas escolas da Grécia
antiga."43 De fato, a primeira parte de A Lei do Novo Pensamento é repleta de referências vagas à sabedoria
oculta e os princípios místicos.
Dresser objeta fortemente esta
pretensão de antiguidade, no entanto, afirmando que "o Novo Pensamento
difere dos idealismos do passado apenas porque ela ignora-os e começa sobre uma
base prática. Felizmente, seus pioneiros eram ignorantes sobre sistemas
antigos."44 E, de fato, Atkinson parece extremamente ignorante
quando se trata de filosofia Hermética, como descobriremos em breve.
Semelhanças com o hermetismo
A doutrina de que o mundo físico é um
reflexo das formas eternas dentro Deus é comum ao Platonismo, em geral,
contribuindo para uma cosmologia idealista compartilhada entre O Caibalion e o Hermetismo. Israel
Regardie expõe sobre a natureza do idealismo Hermético quando afirma que a
Cabala, por si própria uma forma Platônica de misticismo, "é [...] um
idealismo objetivo. Todas as nossas percepções não são exclusivamente do ego, e
nem daquilo que é percebido; elas são representações de certa relação e interação
entre os dois."48 Isto é verdade não só para a Cabala, claro,
mas para a totalidade da filosofia Hermética que remonta ao próprio Corpus Hermeticum[vi].
O Hermetismo da Antiguidade Tardia considerou que o mundo era uma imagem de
Deus, o qual inerentemente "pressupõe a visão do Médio Platonismo nas
quais as ideias, à partir das quais o Demiurgo de Platão criou o mundo, estão
contidas na mente (nous) do Deus
supremo, como seus pensamentos."49O Caibalion está, portanto, de acordo com o Hermetismo e, de fato,
com a totalidade do meio platônico, quando afirma que "Tudo é Mente".
50
No entanto, essa relação em comum não
se dá apenas com o hermetismo. O idealismo filosófico é uma característica
comum do movimento New Age como um todo, assim como a ideia de evolução que O Caibalion abraça tão prontamente. Na
verdade, afirma Hanegraaff, "O tipo de idealismo que se revelou mais
compatível para o novo evolucionismo viu o 'mundo externo' como dependendo de
uma ‘Mente Absoluta, que era simultaneamente o modelo, a soma, e a base de
todas as mentes individuais - alma individual universalizada.‘” 51
O conceito de superar conscientemente
os desejos básicos e impulsos individuais pelo uso de faculdades mais elevadas,
como se fosse superar a vontade com a Vontade, é também central para a
filosofia do Caibalion, e é de fato
um pré-requisito para a transmutação mental que ele promove. "A pessoa mediana",
afirma o Caibalion, "é
preguiçosa demais para agir", e "essas pessoas são governadas quase
inteiramente pelas mentes e vontades de outras pessoas, a quem elas se permitem
pensar e querer por elas", enquanto "[os homens e mulheres fortes do
mundo] dominam suas próprias mentes por sua Vontade." 52 Dion
Fortune concorda com esta avaliação quando ela afirma que "a direção das
energias da vida devem ser removido do domínio dos desejos para o da vontade.
Até que isso seja feito, não pode haver progressão constante em qualquer
direção, porque os desejos são convocados de fora, e não dirigidos a partir do
interior, e variam conforme o estímulo externo."53
Além dos princípios da correspondência
e mentalismo já abordados, os princípios da polaridade e gênero defendidos pelo
Caibalion também são encontrados na
filosofia Hermética. O Caibalion
afirma que "Tudo é Duplo; tudo tem pólos; tudo tem o seu oposto;"54
Este conceito de polaridade pode ser encontrado na cosmologia Cabalística, nos
pilares duplos da Maçonaria e no simbolismo do templo da Golden Dawn, e em uma
variedade de outros locais dentro do pensamento Hermético moderno. John Michael
Greer articula este princípio que se aplica à filosofia Hermética, quando
afirma, "a ideia essencial
subjacente ao princípio da polaridade é que qualquer coisa no universo pode ser
entendida, em termos mágicos, como uma relação energética entre duas forças
opostas, resultando em uma terceira, uma força balanceada "55
O princípio do gênero, que pode ser visto como uma articulação mais específica
da polaridade, também encontra expressão na filosofia Hermética que remonta ao Corpus Hermeticum: "Que Deus é
andrógino é repetidamente afirmado nos Poimandres
(C.H. I, 9 e 15). De acordo com o Asclepius,
20, Deus está 'completamente preenchido com a fecundidade de ambos os sexos’ (utraque sexus fecunditate plenissimus)."56
O Asclepius, 21, continua: "Não
apenas deus [é de ambos os sexos][...] como são todas as coisas animadas e sem
alma, pois é impossível para qualquer uma das coisas que existem de serem
inférteis."57 Assim, o Caibalion
está de acordo com a tradição hermética de longa data, quando afirma que
"tudo no mundo orgânico manifesta ambos os gêneros – existe sempre o
Masculino presente na forma Feminina".58
Pontos de Divergência
Com pelo menos quatro dos sete
princípios fundamentais do Caibalion
claramente atestados dentro de fontes Herméticas, e do princípio da vibração
tão comum dentro do movimento New Age que não cabe nem comentários, torna-se
fácil associar o texto inteiro com a filosofia Hermética que ele clama
representar. Esta associação é atraente, mas é, em última análise, baseada em
pontos comuns relativamente superficiais. Quando se aprofunda no núcleo da
filosofia Hermética, as semelhanças rapidamente começam a desmoronar.
A divergência mais facilmente visível
se dá no domínio da cosmologia. Em comum com todas as filosofias Platônicas, o
Hermetismo fala de uma multiplicidade de emanações da divindade. As diferentes
posições diferem em número, mas o padrão é o mesmo: o Deus único dá origem a
divindades ou princípios menores, estes responsáveis pela criação do mundo
físico como demiurgos. Quando Pico
della Mirandola produziu um casamento entre a Cabala e o Hermetismo, o ponto de
vista cosmológico predominante foi mudado irrevogavelmente à estrutura déctupla[vii]cabalística. Este modelo
viria a ofuscar as cosmologias originais da Hermetica[viii].
Comum a todos, no entanto, é o conceito de um número finito de manifestações
discretas, sendo a final, mais baixa ou a "inferior" a que constitui
o que percebemos como realidade física. Em contraste com essa visão, OCaibalion postula um modelo muito
diferente da existência.
O Caibalion
inicia sua exposição sobre cosmologia dividindo do universo em "três
grandes classes de fenômenos, conhecidos como os Três Grandes Planos", ou
seja, o espiritual, o mental e o físico.59 Esta divisão tripartite
entre anima, spiritus, e corpus não possui
controvérsias, tendo uma longa história não apenas dentro de esoterismo
ocidental como um todo, mas também na teologia exotérica. Conforme a
perspectiva cosmológica do Caibalion,que
é exposta adiante, no entanto, a semelhança se deteriora rapidamente. "Os
Hermetistas", afirma o Caibalion,
"subdividem cada um dos Três Grandes Planos em Sete Planos menores, e cada
um destes últimos também são subdivididos em sete subplanos, todas as divisões
sendo mais ou menos arbitrárias, interpenetrando-se umas nas outras, e adotadas
somente para conveniência do estudo científico e do pensamento."60
O número sete até poderia ser concebivelmente tomado como referentes aos sete
planetas clássicos, mas isso seria forçado — e com as outras subdivisões
sétuplas, resultaria em nada menos do que um esquema cosmológico de 147 níveis.
Ainda mais dissonante com a base platônica sobre a qual o Hermetismo enquanto
histórica é construído, é a afirmação de que cada uma dessas divisões são
arbitrárias e contínuas. As divisões na cosmologia Hermética, sejam as
descritas na Hermetica ou as do
modelo cabalístico posterior, não são definitivamente nenhuma dessas. Ainda
mais estranhamente, enquanto no pensamento Hermético acredita-se que todos nós
estamos operando nos planos de corpo, mente e espírito simultaneamente, esse
não parece ser o caso na perspectiva idiossincrática do Caibalion. Em vez disso, nele nós somos concebidos ocupando um
plano por vez, dos 147 planos, e o destino da raça humana está em sempre
evoluir rumo aos planos superiores. "O homem médio de hoje," afirma o
Caibalion "ocupa a quarta
subdivisão do Plano da Mente Humana, e somente o mais inteligente cruzou as
fronteiras da Quinta Subdivisão. Levou milhões de anos para a raça atingir esse
estágio, e demorará mais muitos anos para a raça passar para a sexta e sétima
subdivisões, e além."61 Assim, o nosso destino não é a ascender
misticamente através planos e unir-se com a divindade, mas sim evoluir ao longo
de um caminho lento e laborioso como espécie em direção a esse objetivo final.
Mesmo os deuses da humanidade, diz o Caibalion,
são mortais como nós: "Podemos chamá-los de 'deuses' se quisermos, mas
ainda são Irmãos Anciãos da Raça, — as almas avançadas que ultrapassam os seus
irmãos, e que renunciaram ao êxtase da Absorção pelo TODO, a fim de ajudar a
raça em sua jornada para subir o Caminho62 É curioso que em nenhuma
outra parte do texto é feita alguma menção desta união extática com a
Divindade, mas esta falta de ênfase parece típica do Caibalion.
Decerto, as diferenças na cosmologia
são quase insignificantes em comparação com a diferença fundamental no foco do Caibalion, em contraste com a do
Hermetismo em seus dois milênios. Hermetismo é e sempre foi central e
imutavelmente focado no conhecimento experimental da divindade. Isto é evidente
desde as primeiras linhas do Poimandres, em que o narrador afirma o seu maior
desejo: "Quero aprender sobre as coisas que existem, para entender sua
natureza e conhecer a Deus [gnōsai ton
theon]" (C.H. I.3).63 O foco no conhecimento salvífico é
tão central para o Hermetismo que em C.H.VII nos é dito que "o maior mal
da humanidade é a ignorância [agnōsia]
a respeito de Deus."64 Até a ênfase cosmológica comum da Hermetica gira em torno dessa
preocupação. A principal preocupação dos autores da Hermetica era "a causa última do universo, Deus e, portanto, o
objetivo de todas as discussões sobre cosmologia e da criação era trazer o
leitor ou o ouvinte através de admiração do cosmos para a adoração e de mística
união com o Deus supremo".65 O ponto de toda a discussão sobre
a natureza do universo, os deuses, os céus e a terra, era elevar a audiência à gnosis divina. Em contraste, o Caibalion concentra-se no conhecimento
da natureza do universo como um meio de obter conhecimento das leis universais,
de modo que este conhecimento por sua vez possa facilitar a prática de
transmutação mental, que é o foco central do texto.
Este conhecimento não é a gnose da Hermetica. O conhecimento da lei
universal de que fala o Caibalion não
representa um conhecimento experiencial alcançado através de um encontro com a
divindade; em vez disso, é uma compreensão intelectual dos princípios da lei
universal e a técnica de transmutação mental. Em conhecimento técnico, este
cairia sob o conceito grego de episteme,
ao invés de gnosis. O objetivo do
Novo Pensamento, e com ele O Caibalion,
"era eliminar as 'falsas crenças’, ‘os erros da mente’, que tinha mantido
[as pessoas] em sujeição."66 A ênfase do Caibalion não era na gnose, mas na noesis, no sentido de que seu foco era uma "compreensão
puramente intelectual."67 Isto está em nítido contraste com a
gnose divina, que se refere "não [...] ao conhecimento racional,
filosófico, mas a religioso, discernimento espiritual, baseada na
revelação."68
A Hermetica,
paralelamente ao ambiente primevo do Médio Platonismo do qual surgiu o
Hermetismo, exibe uma visão idealista do cosmos: o universo é criado da Mente
do divino, e de fato o termo "Mente" (nous) é sinônimo de Deus supremo. Dado o foco central do Caibalion na mente e transmutação
mental, seríamos naturalmente inclinados, portanto, a supor que esses
princípios estão em consonância com a visão de mundo do Hermetismo. E, de fato
não há nada contrário à filosofia
Hermética no conceito de transmutação mental. Mas a mente de que fala o Caibalion não é a Mente da Hermetica. A Hermetica distingue Mente (nous)
como o Deus Supremo, o Uno, o Bem — e o segundo Deus ou demiurgo chamado o logos. O pensamento do Caibalion é decididamente focado em logos, e esta é uma distinção
fundamental entre o pensamento Hermético e o do Caibalion. A ênfase da Hermetica
está na Mente divina como a mais elevada expressão da divindade. Todo o resto
flui a partir desta Mente perfeita, e o objetivo dos Hermetistas era reunir-se
à Mente. O Caibalion, por outro lado,
define o cenário defendendo que o mundo existe na Mente macrocósmica — e então
começa a mudar sua ênfase daí em diante para a transmutação da mente
microcósmica do indivíduo. O Caibalion,
portanto, é fundamentalmente preocupado com a mente ao invés da Mente, com logos ao invés de nous.
Nem, de acordo com o hermetismo, é o logos o foco próprio de sua reverência (eusebia), que deve ser apenas ao nous divino, como exposto em C.H.IV.4:
"Todos aqueles que atentaram à proclamação [de Deus] e imergiram-se na
mente [ebaptisanto tou noos]
participaram em conhecimento e se tornaram pessoas perfeitas [teleoi] porque receberam mente. Mas
aqueles que não se deram conta da proclamação são pessoas de razão [logikoi] porque elas não receberam mente e não sabem o propósito ou os agentes de seu vir a ser".69
Dada a terminologia grega usada na passagem, ebaptisanto sendo uma forma do mesmo verbo que significa
"batizar", mais reveladora seria se a tradução um pouco mais
descontraída da antiga frase acima,levando em consideração as conotações do
vocabulário, fosse: "Todos aqueles que [...] se batizaram na Divindade
participaram em conhecimento revelador e tornaram-se pessoas perfeitas porque
receberam Deus." Longe de direcionar a reverência do leitor para com o nous da divindade, O Caibalion evidencia uma completa falta de ênfase na piedade. O
conceito de reverência (eusebia) é
absolutamente central para a filosofia Hermética, e o foco na interrelação
entre Deus, o mundo e a humanidade é um componente predominante deste
pensamento. 70 Não é através da prática de transmutação mental do Caibalion, de acordo com a Hermetica, mas sim através de reverência que seus pensamentos da
pessoa são alterados: "reverência [eusebia]
é o conhecimento [gnōsis] de deus, e
aquele que chegou a conhecer a Deus, preenchido de todas as coisas boas, tem
pensamentos que são divinos e não como aqueles da multidão."71
O "objetivo unânime" dos
Hermetistas era "trazer o leitor para o louvor e adoração do Deus supremo,
que é 'não visível [i. e. cognoscível], mas evidente dentro do visível'."72
No Poimandres, e no Discurso sobre a Ogdóada e a Enéada, os
autores "vão ainda mais longe e descrevem experiências de êxtase em que o
hermetista deixa sua condição terrena para trás e sente-se unido com o Deus
supremo ou o universo."73
Para ser justo com Atkinson, deve-se
notar que os manuscritos de Nag Hammadi e, portanto, o texto do Discurso sobre o Ogdóada e a Enéada, não
haviam sidos descobertos até 1945 e eram, portanto, desconhecidos durante a
escrita de O Caibalion, e as Definições não haviam sido publicadas
até 1956. Independentemente das "diferenças consideráveis" que
existem nas expressões de misticismo Hermético do Corpus Hermeticum, no entanto, "todos eles têm em comum que o
hermetista trata de um conhecimento intuitivo de si mesmo, o universo e Deus –
um conhecimento que transcende as faculdades mentais humanas comuns e é
experienciada como uma unificação com o fundamento do ser, Deus."74
O Caibalion não demonstra nenhuma
ênfase na experiência extática de unidade com o divino ou a realização da gnose
salvadora.
Em sua totalidade, O Caibalion parece cometer o erro de
confundir os meios com o fim. A Transmutação Mental é considerado o auge da
filosofia Hermética. Uma pequena análise textual serve poderosamente para
reforçar essa impressão. Das 22 instâncias em que características e habilidades
são atribuídas aos "Mestres" ou "Os Hermetistas", termos
que são usados alternadamente, cada um deles refere-se à capacidade de
controlar seu mundo mental: a dominar os seus humores, transmutando e dominando
seus estados mentais, alcançando estabilidade emocional e desenvolvimento
poderes para controlar o mundo à sua volta.75 Mesmo as passagens
referentes ao Mestre ou o Hermetista controlar a causa e efeito se voltam, em
última análise, para o controle de estados emocionais e mentais. Seu poder
sobre-humano, no final, não é nada mais do que uma forma de continência mental.
Seu domínio é alcançado através da compreensão das leis naturais e ao
colocá-las em prática, ao invés de ascender nos planos para alcançar união
extática com a divindade.
Pode ser certo que esta ênfase na lei
cósmica e sua aplicação adequada tem um lugar dentro da filosofia Hermética.
Dion Fortune, em O Treinamento e Trabalho
de Um Iniciado[ix],
lista como suas três divisões do ocultismo "harmonização com a Lei Cósmica
por meio de entendimento correto", "ajuste das desarmonias por meio
do uso correto do poder que o conhecimento confere," e "purificação
da alma através de boas obras em todos os planos."76 O Caibalion, claro, mostra forte ênfase em
pelo menos os primeiros dois pontos, e se interpretarmos o autodomínio mental
dos "Mestres" do Caibalion
e sua capacidade de moldar o mundo à sua volta, assim como aplicado para a
realização de boas obras, podemos incluir este último princípio também. Mas
Fortune prossegue afirmando que "não há nada de intrinsecamente espiritual
sobre qualquer uma [dessas três coisas], mas no entanto, eles são os três primeiros passos da escada que leva
até as alturas do Espírito [...] [grifo nosso]."77 Assim, este
conhecimento das leis universais e a harmonização do indivíduo com elas é meramente
o início da jornada, em vez de o objetivo final, como retratado em O Caibalion. A Hermetica é consistente com este ponto, bem como quando eles
afirmam em C.H.III.3-4, "E através do curso do trabalho milagroso dos
deuses cíclicos eles criaram cada alma encarnada para contemplar o céu, [...]
as obras de Deus e as obras da natureza; [...] Para conhecer o poder divino; [...]
E descobrir todos os meios de trabalhar habilmente com coisas que são boas.
Para eles, este é o começo da vida virtuosa e do pensamento sábio, tanto quanto
o curso dos deuses cíclicos destina-a..."78 A Hermetica, assim,
concorda que este conhecimento e seu consequente poder é o início da vida
virtuosa, ao invés do objetivo da mesma.
Para um texto que pretende ser uma
obra de filosofia Hermética, O Caibalion
surpreendentemente tem pouco a dizer sobre Deus. Atkinson fala do
"TODO" com alguma frequência, mas isso parece um pouco como um meio
para um fim: após os rudimentos da cosmologia os atributos de Deus são deixados
de fora, pouca atenção é dada a eles para além do seu papel no apoio à
subjacente estrutura do universo que facilita a técnica de transmutação mental.
Na verdade, O Caibalion é veemente e
explicitamente anti-teológico em sua orientação, um traço que parece
decididamente estranho em justaposição com a orientação da filosofia Hermética.
No Caibalion nos é dito que "a
teologia significa as tentativas dos homens de atribuir personalidade,
qualidades e características [ao TODO]; suas teorias sobre seus assuntos,
vontade, desejos, planos e projetos, e sua assunção do ofício de ‘homens-intermediários’
entre o TODO e as pessoas", e adiante é dito que "Teologia e
Metafísica parecem juncos delgados, enraizados nas areias movediças da
ignorância."79 Ironicamente, imediatamente após condenar a
atribuição de qualidades e características ao "TODO", o próprio
Atkinson continua na mesma página atribuindo-lhe as qualidades e
características de infinito, onipotência, imutabilidade, e eternidade.80 Embora
o Caibalion conceda aos termos "Religião"
e "Filosofia" bastante crédito, dizendo que estes se referem a
"coisas que têm raízes na Realidade", esta distinção é na melhor das
hipóteses especiosa.81É impossível determinar o que é a chamada
"Realidade" sem recorrer a algum tipo de suposição metafísica e
teológica. Existe a sugestão de que o que constitui a realidade deve
simplesmente ser tomado como axiomático; mas enquanto isso pode ser
retoricamente atraente, que o que fazemos é Religião e Filosofia; o que eles fazem é Teologia, isso é
filosoficamente repleto de dificuldades. Assim como não existe tal coisa como
um almoço livre, também não há tal coisa como uma metafísica livre. Em
contraste com a posição do Caibalion,
a filosofia Hermética sempre se envolveu fortemente em teologia. A Hermetica está repleta de descrições de
Deus e da natureza da realidade última, da palavra de vários intermediários
entre Deus e o homem sob o pretexto de serem demiurgos assim como asiarcas planetários,
os deuses inteligíveis e sensíveis, e várias outras entidades, e da relação
entre o divino e o humano.82A Hermetica
filosófica, de acordo com Copenhaver, "lida, ao invés disso, com questões
teológicasou,falando de modo menos rigoroso, com questões filosóficas: ela revela
ao homem o conhecimento das origens, natureza e propriedades morais do ser divino,
humano e material para que o homem possa usar esse conhecimento para se salvar.
Pela mesma filosofia piedosa ou piedade filosófica - uma mistura de teologia,
cosmogonia, antropogonia, ética, soteriologia e escatologia - também se caracteriza
o Asclepius Latino [...]".83
Festugière, ao encontrar a Hermética grandemente disparatada em seus
ensinamentos, identificou"uma certa atitude de piedade, um certo estado de
espírito que se baseia em verter cada indagação filosófica na direção da
piedade e do conhecimento de Deus"que é o único fio condutor que conecta
todo o Corpus.84 Isto
constitui a preocupação central da Hermetica.
Depreciar a teologia, portanto, é em alguma medida equivalente a condenar a
própria Hermetica em si.
Perspectivas modernas sobre O Caibalion
Até agora vimos que enquanto o Caibalion mantém um certo grau de
consonância com o Hermetismo enquanto corrente histórica, as divergências são
muitas e profundas. Autores contemporâneos, no entanto, parecem estranhamente
determinados a exonerar O Caibalion
de críticas de que o condenaria como um texto que não é autenticamente Hermético.
Deslippe, em sua introdução à edição Penguin/Tarcher de O Caibalion, defende o trabalho com relação a este ponto —seu
trabalho fez um movimento surpreendente ao desmascarar Atkinson como o único
autor e associando o texto com o movimento do Novo Pensamento em que Atkinson fazia
parte. Enquanto Deslippe reconhece que os "axiomas Herméticos" do Caibalion provavelmente tiveram suas
origens no próprio pensamento de Atkinson ao invés de longa tradição, ele defende
que "os elementos do Caibalion
que viriam a ser contestadas ou caluniados estão perfeitamente alinhados com o
espírito da história do Hermetismo”.85Em seguida, ele continua a
fazer sua apologia em vários pontos
distintos. Na primeira delas, ele afirma que "para criticar O Caibalion como um tipo de ensinamento
espiritual impuro, inautêntico ou ao ficar preocupado com o fato de Atkinson ter
usado um pseudônimo ou questionar a autoridade do texto, é de algum modo um ataque
por ele ser tradicionalmente Hermético."86A prática de usar
pseudônimo sé de fato comum em toda a história do Hermetismo; mas enquanto a autoria
do pseudônimo de Atkinson pode ser defendida, isso não torna o texto
autenticamente Hermético. E nem pela ênfase na lei cósmica, que Deslippe se
refere quando ele afirma que "era comum para os grupos existentes sob a
bandeira do Hermetismo descreverem o universo em termos de leis cósmicas ou universais."87
Ambas as práticas eram e ainda são comuns em numerosos domínios, não somente no
Hermetismo. O foco na lei cósmica é comum à totalidade do movimento moderno New
Age, do qual Novo Pensamento foi um componente seminal, e autoria com
pseudônimos tem sido uma prática tão comum ao longo dos milênios que não demandanem
maiores comentários.
Deslippe prossegue associando O Caibalion ao Hermetismo via referência
à Tabula Smaragdina, ou Tábua de
Esmeralda. "O paralelo mais próximo a um imaginado Caibalion antigo", afirma ele, "teria sido a Tábua de
Esmeralda Hermética [...] As breves treze linhas da Tábua de Esmeralda rudemente
proporcionam uma estrutura semelhante como as Sete Leis Herméticas do
Caibalion, e ambos utilizam a famoso linha Hermética, 'Assim como é em cima, é
abaixo.’"88 Ele afirma ainda que "enquanto a Tábua de
Esmeralda [...] reduziu a filosofia Hermética em uma série de curtos axiomas, o
Caibalion argumentou sobre seus
pontos, explicando e detalhando cada axioma e fornecendo uma estrutura
subjacente para eles."89 Esta é uma afirmação extremamente
bizarra, e que só pode ser levada ou como uma tentativa bastante forçada para “cobrir
o Caibalion com um verniz hermético”
ou como evidência de uma profunda falta de familiaridade com a própria Tábua de
Esmeralda. A Tábua de Esmeralda é a origem do axioma ”Assim como é em cima, é
abaixo"90 que Atkinson faz ecoar no Caibalion, mas a semelhança entre os dois textos termina por aí.
Para além desta única frase, a Tábua de Esmeralda não oferece axiomas, muito
menos uma estrutura semelhante às Sete Leis Herméticas do Caibalion. Se a semelhança mais forte entre O Caibalion e hermetismo só é encontrada na Tábua de Esmeralda, a
relação entre os dois é realmente muito escassa.
Deslippe não é de modo algum o único
autor que tem defendido O Caibalion
de acusações de que ele é inautêntico hermeticamente. Richard Smoley, autor de
uma variedade de trabalhos em esoterismo ocidental e ex-editor da revista Gnosis, admite que “os aforismos em O Caibalion são muito provavelmente uma
fraude piedosa”, mas ao mesmo tempo em que ele sustenta que “existe uma enorme
diferença entre os ensinamentos Herméticos originais e as doutrinas do
Caibalion recheadas de doutrinas de Novo Pensamento,” ele acredita, no entanto,
que “seria equivocado concluir que esse trabalho é infiel à tradição que ele
evoca.”91 Como vimos, entretanto, não é meramente da Hermetica original que O Caibalion difere, dada a comparação
com o Corpus Hermeticum que fornece a
mais visível evidência da divergência do trabalho com o pensamento Hermético
como um todo. As raízes da gnosis, da reverência, e comunhão extática com o
divino que foram plantadas na Antiguidade Tardia têm permanecido central no
Hermetismo, mesmo com este tendo várias ramificações que brotaram durante o
Renascimento e modernidade.
Apesar da centralidade dos valores
acima para a filosofia Hermética, no entanto, poder-se-ia questionar se todos
os textos que clamam serem herdeiros da tradição Hermética precisam
necessariamente evidenciar todas essas características. O Hermetismo é uma
ampla tenda, esta que deu origem a numerosas expressões de teoria e prática.
Mas ainda que não seja necessário que um texto envolva-se em teologia a fim de
encontrar um lugar confortável dentro do domínio Hermético, isso estaria no
mínimo fortemente inconsonante com o corpo de pensamentos estabelecido. Especialmente
se o texto alega ser um trabalho de filosofia
Hermética, como faz O Caibalion, ele
se coloca sob a responsabilidade de todo corpo filosófico existente dentro da
Hermetica e outros trabalhos. O texto falha a esse respeito. Como tal, a
suposição longamente sustentada de que O Caibalion é consonante com a filosofia
Hermética como corrente histórica é errôneae precisa derevisão.
Hermetismo há muito se apropriou de
ideias e até mesmo de sistemas inteiros que não se originaram de dentro de seu
próprio meio. Como um movimento fortemente sincrético tanto nos tempos antigos
quanto modernos, ele incorpora uma mistura eclética de temas. Ao gnosticismo
pagão Greco-Egípcio original do Corpus
Hermeticum, estudiosos do Renascimento acrescentaram Cabala Judaica e magia
angelical. John Dee contribuiu com um esquema completo de pensamento e prática
Enochianos. No século XVII, o Rosicrucianismo floresceu sob a bandeira de
Hermes Trismegisto. A Golden Dawn contribuiu com a sua influência ritual
para-maçônica e forneceu uma estrutura coerente de tal modo que não havia sido visto
desde De occulta philosophia de
Agripa, quatro séculos e meio antes. Mesmo estes, no entanto, representam a
evolução lógica da literatura mágica Greco-Egípcia da chamada "Hermetica
técnica", e evidenciam um foco no divino que está totalmente ausente em O Caibalion. Pode oCaibalion hoje pode ser considerado uma parte da tradição
hermética, simplesmente em razão de sua ampla aceitação nesse contexto?
Possivelmente, talvez. Mas isto é antes puramente em virtude de assimilação, do
que em virtude de suas próprias qualidades essenciais. Em análise final, O Caibalion nada diz sobre a tradição
Hermética — mesmo que a tradição Hermética contemporânea tenha muito a dizer
sobre O Caibalion.
Notas
1. Three Initiates, The Kybalion:
A Study of the Hermetic Philosophy of Ancient Egypt and Greece (1908;
reimpressão, Chicago: The Yogi Publication Society, 1940), 25.
2. Philip Deslippe, introdução ao The
Kybalion: The Definitive Edition, by William Walker Atkinson writing as Three
Initiates, edited by Philip Deslippe (New York: Jeremy P. Tarcher/Penguin,
2011), 1.
3. Barbara Bowen Oberg, “David
Hartley and the Association of Ideas”, Journal of the History of Ideas 37,
no. 3 (1976), 442-443.
4. Deslippe, intro. ao The Kybalion, 19.
5. Horatio Wills Dresser, A
History of the New Thought Movement (New York: Thomas Y. Crowell Company,
1919), v.
6. Ibid.
7. Deslippe, intro. ao The Kybalion, 18.
8. Three Initiates, Kybalion, 21.
9. Three Initiates, Kybalion, 25-26.
10. Simon Blackburn, ed., The
Oxford Dictionary of Philosophy, 2nd ed. (Cambridge: Cambridge University
Press, 2008), s.v. “idealism” – “Any doctrine holding that reality is
fundamentally mental in nature.”(Qualquer doutrina que sustente que a realidade
é fundamentalmente mental em natureza)
11. Three Initiates, Kybalion, 25-40.
12. Ibid., 45.
13. Wouter J. Hanegraaff, ed., Dictionary
of Gnosis and Western Esotericism (Leiden: E. J. Brill, 2006), s.v. “New
Thought Movement”
14. Dresser, History, 136.
15. Wouter J. Hanegraaff, New Age
Religion and Western Culture: Esotericism in the Mirror of Secular Thought,
Studies in the History of Religions (Numen Book Series) LXXII (Leiden: E.
J. Brill, 1996), 483-485.
16. Sarah J. Farmer, “The Abundant
Life”, in The Spirit of New Thought: Essays and Addresses by Representative
Authors and Leaders, editado por Horatio Wills Dresser (New York: Thomas Y.
Crowell Company, 1917), 31.
17. Horatio Wills Dresser, introdução
ao The Spirit of the New Thought: Essays and Addresses by Representative
Authors and Leaders, edited by Horatio Wills Dresser (New York: Thomas Y.
Crowell Company, 1919).
18. Dresser, History, 161-162.
19. Dictionary of Gnosis and Western Esotericism, s.v. “New Thought
Movement”
20. Dresser, History, 160.
21. Dresser, intro. ao Spirit of the New Thought, 12.
22. Nannie S. Bond, “The New
Thought”, in The Spirit of the New Thought: Essays and Addresses by
Representative Authors and Leaders, editado por Horatio Wills Dresser (New
York: Thomas Y. Crowell Company, 1917), 138-139.
23. Deslippe, intro. to The Kybalion, 3.
24. Ibid., 3.
25. Ibid., 3-4.
26. Ibid., 20.
27. Ibid., 21.
28. Ibid., 20-21.
29. William Walker Atkinson, Thought
Vibration or the Law of Attraction in the Thought World (Chicago: The
Library Shelf, 1909), 2-4, 38, 50.
30. William Walker Atkinson, The
Law of the New Thought, edited by Lux Newman and Phineas Parkhurst Quimby
Philosophical Society (1902; reimpressão, n.p.: Seed of Life Publishing, 2008),
2. Ênfase no original.
31. Ibid., 8. Ênfase no original.
32. Three Initiates, Kybalion,
8.
33. Atkinson, Thought Vibration,
3.
34. Three Initiates, Kybalion,
138.
35. Atkinson, Thought Vibration,
110.
36. Three Initiates, The Kybalion,
38.
37. Ibid., 154.
38. Atkinson, Thought Vibration,
35.
39. Dresser, History, 145-146.
40. Ibid., 146.
41. Atkinson, citado
em Dresser, History, 313.
42. Atkinson, Law of the New
Thought, 1.
43. Ibid., 2.
44. Dresser, History, 313.
45. Three Initiates, Kybalion,
28. Esse
axioma é usado em diversos outros lugares no texto.
46. Ibid., Kybalion, 113.
47. Dictionary of Gnosis & Western Esotericism, s.v. “Hermetism”
48. Israel Regardie, A Garden of
Pomegranates: Skrying on the Tree of Life, edited by Chic Cicero and Sandra
Tabatha Cicero, 3rd ed. (St. Paul, MN: Llewellyn Publications, 1999), 128.
49. Dictionary of Gnosis & Western Esotericism, s.v. “Hermetism”
50. Three Initiates, Kybalion,
26.
51. Hanegraaff, New Age Religion,
467.
52. Three Initiates, Kybalion,
205-206.
53. Dion Fortune, The Training and
Work of An Initiate, 2nd ed. (London: The Aquarian Press, 1955), 22.
54. Three Initiates, Kybalion,
32.
55. John Michael Greer, Paths of
Wisdom: The Magical Cabala in the Western Tradition, Llewellyn’s High
Magick Series (St. Paul, MN: Llewellyn Publications, 1996), 32. Emphasis in
original.
56. Dictionary of Gnosis & Western Esotericism, s.v. “Hermetism”
57. Brian P. Copenhaver, Hermetica:
The Greek Corpus Hermeticum and the Latin Asclepius in a New English
Translation, with Notes and Introduction (Cambridge: Cambridge University
Press, 1992), 79.
58. Three Initiates, Kybalion,
189.
59. Three Initiates, Kybalion,
113-114.
60. Ibid., 118.
61. Ibid., 126.
62. Ibid., 131.
63. Copenhaver, Hermetica, 1.
64. Ibid., 24.
65. Dictionary of Gnosis & Western Esotericism, s.v. “Hermeticism”
66. Dresser, History, 132.
67. Webster’s Third New International Dictionary, s.v. “noesis”
68. Dictionary of Gnosis & Western Esotericism, s.v. “Gnosticism I:
Gnostic Religion”
69. Copenhaver, Hermetica,
15-16.
70. Dictionary of Gnosis & Western Esotericism, s.v. “Hermetism”
71. C.H. IX.4. Copenhaver, Hermetica,
28.
72. Armenian Definitions 1, 2, Dictionary of Gnosis & Western
Esotericism, s.v. “Hermetism”
73. Ibid.
74. Ibid.
75. Three Initiates, Kybalion,
inteiro.
76. Fortune, Training, 69.
77. Ibid.
78. Copenhaver, Hermetica,
13-14.
79. Three Initiates, Kybalion,
57-58.
80. Ibid., 59-61.
81. Ibid., 58.
82. Dictionary of Gnosis & Western Esotericism, s.v. “Hermeticism”
83. Copenhaver, Hermetica, xxxii.
84. Festugière,
citado em Copenhaver, Hermetica, lv.
85. Deslippe, intro. ao The Kybalion, 15.
86. Ibid., 16.
87. Ibid, 29.
88. Ibid., 17.
89. Ibid., 14.
90. “Quod est inferius est sicut quod est superius, et quod est superius
est sicud quod est inferius, ad perpetranda miracula rei unius.” (De acordo com
o texto de Chrysogonus Polydorus, Nuremburg 1541)
91. Richard Smoley, “The
Mysterious Kybalion,” New Dawn Magazine 124 (Jan-Feb 2011), 13-14.
[a]Nicholas
E. Chapel é pesquisador na área de Esoterismo Ocidental por mais de vinte anos.
Completou sua graduação em religião na Duke University, e suas pesquisas têm
como foco os movimentos esotéricos do final do século XIX e início do século
XX. Chapel mora e trabalha em Minneapolis, Minnesota, onde mantém sua pesquisa
como acadêmico independente, e é também membro da Ordem Hermética da Aurora
Dourada.
[i]Traduzido
por Lucas Moraes de Araújo,de Chapel, N.E. “The Kybalion’s New
Clothes: An Early 20th Century Text’s Dubious Association with Hermeticism”,
disponível em
<
http://www.jwmt.org/v3n24/chapel.html>
[ii]Em
inglês “The Kybalion” , o autor se
refere a uma das edições cuja introdução escrita por Phipip Deslippe não consta
na versão popularizada de O Caibalion
no Brasil, pela editora Pensamento.N.do T.
* Título original em inglês “The Spiritual Science of Health and Healing”, N. do T.
[iii]Livro
de uma série de publicações americanas que traz dados biográficos e informações
pessoais de pessoas famosas, e que segundo o autor, Marquis, “busca traçar o
perfil dos líderes da sociedade americana, homens e mulheres que influenciam o
desenvolvimento da nação”, N. do T.
[iv] Do inglês “Thought Vibration or the Law of Attraction in the Thought World”, N.
do T.
[v]Do inglês “The Law of the New Thought”, N. do T.
[vi]
Conjunto de dezoito textos greco-egípcios fundacionais do Hermetismo, escritos
entre os anos 100 e 300 d.C. na então
província romana do Egito, e traduzidos para o latim no séc XV. Eles se
apresentam em maior parte na forma de diálogos onde um mestre, identificado
como Hermes Trismegistos, elucida um discípulo. Eles discorrem sobre o divino,
o cosmos, a mente, a natureza e por vezes a alquimia, astrologia e conceitos
afins. Os textos são a base do Hermetismo. N. do T.
[vii]
Estrutura “de dez” sephirot da árvore
da vida cabalística. N. do T.
[viii]Corpus Hermeticum, ou Hermetica.
N. do T.
[ix] Do inglês “The Training and Work of An Initiate” de Dion Fortune. N. do T.
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