Este artigo originalmente saiu no Jorna do Brasil no dia 23 de agosto de 2018. Para o link do original, clique AQUI.
Nelson Job
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Primeira aquarela abstrata, 1910-1913, Kandisnky |
Algo
singular aconteceu na virada do século XIX para o XX, com tanta intensidade que
só agora parecemos ter os elementos necessários para compreendê-lo. Creio que
podemos sugerir que tenha ali emergido uma espécie de “pulso” ou vortex na Europa, que se alastrou além e
afetou tudo e todos, com alguns platôs mais evidentes. Esse pulso teve como
trampolins o Iluminismo e o Renascimento.
Vamos
aos fatos. A eletricidade ganhava o cotidiano, mudando radicalmente o panorama
da cidade junto ao rádio, telefone, automóvel, avião e edifícios. O cinema
ampliava seu mercado, criando o star
system.
Na
ciência, a segunda metade do século XIX trouxe a Teoria da Evolução de
Darwin-Wallace e as descobertas da natureza da luz e do campo eletromagnético,
que, por sua vez, deram fomento, em 1900, ao quantum de Planck. Esse, com o desdobramento de Bohr e outros, deu
origem à mecânica quântica – a estranha física do microcosmos, cujas partículas
se comportam como onda, ou, segundo a interpretação de alguns, são ondas. Einstein, co-criador e
detrator da mecânica quântica, forjou a Relatividade Restrita e, anos depois, a
Geral, propondo a equivalência entre matéria e energia. O físico alemão dava
créditos às novas geometrias não-euclidianas do espaço curvo, que emergiram um
pouco antes. No campo da lógica, houve uma grande revolução com Cantor, Russel
e outros, culminado em 1931 com o Teorema de Gödel, o qual evidenciou a
matemática, outrora linguagem perfeita da Natureza, como incompleta e/ou
inconsistente.
Na
filosofia, a virada do século viu os últimos momentos de Nietzsche e conheceu a
obra de Bergson, que conceituou o virtual
– espécie de memória cósmica atemporal que abriga todos os tempos múltiplos.
Simultaneamente, Freud sistematizava uma clínica do inconsciente, a psicanálise.
O
inconsciente transbordava também na arte. O impressionismo do século XIX
convidava à linha livre de Klee, ao abstrato de Kandinsky e ao cubismo de
Picasso. Estavam abertas as portas para as vanguardas do século XX. Os monstros
se insinuavam para além da escuridão na literatura de Lovecraft, borrava as
fronteiras ao longo de leitor, obra e escritor em Kafka. Os irmãos James
criavam o conceito de fluxo de
consciência, que culminaria na obra de Joyce. Fernando Pessoa(s) inventava
a poética dos heteronômios. O poeta fez o mapa astral e ajudou a forjar o
suicídio do mago Aleister Crowley, que, ao lado de Austin Osman Spare e Dion
Fortune, moldariam o esoterismo do século XX, menos secreto, logo, mais
acessível.
Esse
pulso da virada deixou o mundo nas mais intensas vibrações: o cinema colocou a
fotografia em movimento; a mecânica quântica injetou devir e instabilidade na
física; as artes, a lógica e a geometria encontravam novas forças de expressão.
Esse
pulso não é garantia apenas de grandes descobertas. A instabilidade social,
política e econômica geraram as guerras mundiais, que mudaram o panorama do
planeta. A bomba atômica, prefigurada pela nova física, desestabilizou efetiva
e afetivamente a “matéria”.
Hoje,
também observamos instabilidades em vários níveis. O que podemos aprender com o
pulso da virada do século? Primeiro, que há uma grande ressonância ao longo dos
saberes e eventos históricos. Percebemos, agora, que todas essas novidades do
momento 1900 possuíam uma forte relação: a de desestabilizar, "para além do Bem e do Mal", o que estava
pré-estabelecido.
O
que parece sugerir que hoje passamos por um desdobramento do momento 1900 e,
sendo assim, tudo ressoa. Habitar um cosmos interligado,
solidário, imanente e em que todos estamos ressoando com todos é o primeiro
passo para uma ecologia cósmica, que atrai
novas abordagens, não mais sobre a
Natureza, mas sendo a Natureza,
emergindo nela. Uma ecologia cósmica é o que nos permitirá resistir aos novos fascismos e construir
coletivamente campos de resistência estrategicamente provisórios.
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