Nelson Job
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Como o ser humano ocidental
se tornou tão só, desamparado em relação ao cosmos em que habita? A resposta é
tão complexa quanto processual, exigindo que apreendamos como o dualismo ocorreu ao longo dos tempos.
A nossa divisão entre Ocidente e Oriente já evidencia
esse dualismo, pois aqueles que chamamos “orientais” evitem essa postura: muitos
deles apreendiam o imanifesto e o manifesto enquanto complementares. Nós separamos vida e morte, senhor e escravo, e
assim por diante. Basta uma divisão para que muitas se instalem. E assim foi: no
Império Antigo do Egito, a sociedade se organizava tratando religião, política,
filosofia, arquitetura etc. enquanto um contínuo. Já no Império Novo, vários
deuses imanentes ao cosmos foram sendo abolidos em prol de um deus
transcendente: os deuses deixaram de existir através dos humanos, para que eles obedecessem a apenas um que
estava Além. O dualismo desdobra-se na Grécia Antiga, separando filosofia e “ciência”
de um lado, mito e rito de outro. Por sua vez, na Idade Média, o Cristianismo
vai separar Deus e mundo, e no século XVII, Descartes concebe corpo e mente
enquanto naturezas diferentes, enquanto as palavras, que eram antes extensões
das coisas, se tornavam apenas representações delas.
O alquimista Isaac Newton publicou em vida apenas seu
trabalho científico. Essa edição de sua obra impulsionou a Revolução
Científica, que intensificaria ainda mais o dualismo, separando o mundo e sua representação
numérica. No século XVIII, Kant levou esse dualismo ao ápice, afirmando que não
temos acesso à realidade, apenas a “filtramos” através de nossas mentes. O
imanifesto ou os invisíveis deixaram de
povoar a experiência cotidiana, migrando para onde eram supostamente mais controláveis,
a saber, no imaginário científico: na força de gravidade, no campo
eletromagnético e no emaranhamento quântico.
Freud até identificou bem esse desamparo, mas sua solução
agravou o problema. Tal desamparo contribuía para que algo supostamente superior
e transcendente ordenasse como alguém deveria viver a sua vida, seja ele deus,
rei, empresa, padre, chefe, juiz etc. O pensamento
da transcendência preparou o ser humano para a servidão.
No mesmo século XVII cartesiano, temos Spinoza, um
polidor de lentes, ou seja, destinado a fazer a humanidade a enxergar melhor.
Herdeiro de todos que pensaram à margem do Ocidente – egípcios do Império
Antigo, Heráclito e Estoicos na Grécia, os bruxos herméticos medievais –, o
spinozismo expressa Deus e Natureza enquanto imanentes, entrando em ressonância
com certa filosofia oriental. Habitar essa Natureza processual expulsa qualquer
possibilidade de transcendência opressora. O ser humano, cósmico, caminharia,
assim, rumo à liberdade e à beatitude, a apreensão de que ele é um com a
multiplicidade cósmica.
Apreendemos o multidisciplinar como os saberes um ao lado
do outro, e o interdisciplinar quando estes se atravessam. Já o
transdisciplinar seria um saber híbrido que emerge das relações entre eles. A
obra de Spinoza seria transdisciplinar, confluindo filosofia, ética, teologia,
ótica e geometria. Muitos autores desdobram esse campo: os filósofos Bergson e
Deleuze, o antropólogo Tim Ingold etc. As ressonâncias ao longo dos saberes se
pronunciam: com os adventos da cosmologia, da mecânica quântica, da arte
moderna, da biologia (sobretudo a epigenética e os novos estudos acerca dos
fungos) e a nossa abertura crescente à meditação e toda a sabedoria “oriental”,
estamos mais aptos a tecer a transdisciplinaridade.
No compasso da prática africana ubuntu de saber, ou seja, estar atento à imanência ao longo dos
processos da vida e do conhecimento, a transdisciplinaridade precisa ocorrer
nesta imanência. Para dar um passo além do conhecimento trans-disciplinar, propomos os transaberes, ou seja, o
transdisciplinar na vida, em que o conhecimento
se desdobre em sabedoria. Essa sabedoria se adquire com intuição, a saber, a imanência ao longo do conhecer e sentir: no
corpo, enquanto cosmos.
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